segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Reconstrução



Reconstrução

Apeteceu-lhe o paladar olhar aquela figura que há poucos minutos atrás se apresentava com tanta virilidade, agora imóvel, exausta e já sem sinal de vitalidade alguma.
Para acalmar os ânimos de seu interior ainda sedento, saiu sorrateiramente da cama e abriu a porta de correr que dava para varanda. Era noite quente. Sentiu o contraste em sua tez, quando uma brisa com cheiro de mar fresco alcançou-lhe, e atrevidamente percorreu o seu corpo seminu, protegido apenas pelo camisão abotoado displicentemente.
Lembrou-se de seu pai, que a levava quando criança, para descobrir as diversas formas de vidas encravadas na areia da praia. Lá construíam castelos juntos, bem ao alcance das ondas, e assim podiam ficar horas e horas na arte de construir e reconstruí-los, logo que as águas salgadas faziam a vez de demolidor. Era sempre uma nova perspectiva da criação, e uma nova realização pessoal do criador que há dentro de cada ser humano. Ela aprendera muito com esse grande homem que fora seu pai, principalmente a lição de se levantar diante de qualquer queda, fosse o tamanho que fosse, e de suportar a perda, ainda que de alguém que se amasse descomedidamente, como ela sempre o amou, mas um dia teve que dizer adeus.
Distraída em seu mundo de lembranças e sentimentos, não notou quando um inseto se arrastou próximo de seus pés, mas assim que percebeu que se tratava de uma temível e asquerosa barata, perdeu-se de sua nostalgia instantaneamente. De início só conseguiu sentir pavor, mas isso se transformou em asco e logo em seguida em indignação e raiva. Sem pestanejar, deu-lhe uma pisada de calcanhar, e pode sentir o exoesqueleto do inseto trincando debaixo de seu pé descalço, liberando todo o conteúdo esbranquiçado e mal cheiroso.
Em qualquer outro dia, diante dessa situação, teria saído correndo, vencida pelo medo daquela figura. Mas não hoje. Hoje era dia de reviravoltas, e de reconstruir até os próprios temores. Assim, como aprendera com seu falecido pai.
Refeita do susto, resolveu tomar um banho morno. Deixou que a água lavasse não somente o corpo, mas também a sua alma vingada.
Voltou para cama e tomou posse daquele corpo ainda entorpecido. Usou de seus artifícios mais femininos e predadores e elevou em instantes a libido daquele ser agora totalmente indefeso e entregue à própria sorte. Outro dia qualquer, ela teria sido apenas passiva, submissa e tímida. Mas não hoje. Hoje era dia de reviravoltas, e de reconstruir até seus próprios pudores.

Gemeu. Suou. Contorceu-se. E reconstruiu seus laços com aquele ser que tanto desejava. Finalmente pôde enfim se sentir reconstruída. Sentir-se mulher.

Lilly Araújo

Publicado na Antologia : Albergue dos Poetas, da ALBA. 2014.

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