segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Doce trabalho



Apertou suavemente o objeto de vidro contra os lábios. Sentiu-lhe o tato frio e o paladar consoante, enquanto o líquido negro percorria suas entranhas e conhecia-lhe por dentro, proporcionando-lhe um afago que há muito não sentia de qualquer alma viva que fosse. O calor do alimento se contrapunha a tudo que acabara de sentir, mas também lhe causava uma sensação de estar recebendo um caloroso abraço. Sorriu de si mesma. Não soube ao certo se o riso fora causado pela estranheza das sensações, ou se porque simplesmente se reservasse no direito de se sentir feliz, por qual motivo fosse.
Alimentada, voltou à sua reclusão taciturna. Embrenhou-se entre as pilhas de papéis multiformes. Alguns pautados, outros apenas brancos, a olhar para ela e esperar o seu toque que lhes colocariam nódoas de uma particularidade ímpar.
Era assim que era o relacionamento íntimo e quase indescritível que ela mantinha com aquele cômodo, que era mais que um escritório. Lá ela passava quase todos os momentos de seu estado produtivo. Ademais, ou estava no banho, ou estava comendo, ou dormindo.
Avessa ao exterior de sua clausura, já nem se lembrava mais do sol de outono, o havia abandonado há muitos anos, e também à imensa lua, que antes exercia sobre ela um poder avassalador, arrancando-lhe suspiros e sentimentos que agora, preferia nem considerar que existissem.
Não era gorda e nem tampouco magra. Era muito bonita, não fosse pelo olhar baço que trazia diuturnamente, seria considerada uma atração irresistível a qualquer macho de sua espécie. Mas ela prosseguia como se não tivesse noção da sua beleza, ou qualquer pretensão de tirar alguma vantagem disso. Ignorava os espelhos ou as maquiagens. Contrariava qualquer manual de feminilidade, suprimindo a vaidade impregnada em seus genes.
Nada a fazia feliz não tivesse folhas e letras. Tudo no seu mundo era o mundo inventado por alguém, e transcrito nas histórias que lia, relia e se deliciava. E ela mesma aprendera a criar o seu próprio mundo, feito de paredes sólidas de grafite, tijolos de letras, tetos de imaginação, e jardins de poesias. Onde colhia uma a uma as flores que a literatura lhe oferecia.
Era esse o seu trabalho. Era essa a sua vida. Vivia no mundo das palavras e sobrevivia nas entrelinhas.
Não tinha inimigos declarados, e amigos, não os tinha, nenhuns. E não lhe fazia falta, pois em seu ofício, não poderia se dar ao luxo de ficar no portão jogando palavras ao vento com uma vizinha qualquer. Seria um crime. Não poderia jamais! Reservava cada inspiração e cada pensamento para criar a sua obra-prima.
Com o suor de seus dedos, escorrendo pela lapiseira, muitas vezes, ela viu a sua obra ir criando forma. Não desperdiçava qualquer letra que fosse e já estava até desacostumada a verbalizar. As suas cordas vocais se apegavam umas às outras, sentindo-se inúteis e desnecessárias. Acordadas vez ou outra apenas por um “ai” que lhe denunciava as dores musculares que sentia, causadas pela inércia de seu corpo bem torneado, mas totalmente obsoleto às suas necessidades habituais. E exceto pela mão, não movia quase nada, quase o tempo todo. Era assim o seu trabalho. Era assim a vida que adotara para si, sem se preocupar com nenhuma oposição dos familiares ou imposição alheia.
E ela passou por sua juventude inadvertidamente, apenas criando e criando. Ninguém tinha acesso aos seus textos. Não se iludia em ganhar qualquer reconhecimento, e era avessa a concursos literários ou qualquer forma de publicação que a expusesse diante de olhos curiosos e críticas. Não se submeteria a qualquer julgamento. Seus textos eram mais que palavras grafadas, eram a construção de sua alma. Eram sagrados! Ficavam seguros na sala silenciosa que lhes aconchegavam, mantendo-os em segurança. Ali era o seu santuário.
Numa tarde de inverno, ela sentou-se com certa dificuldade diante da lareira e deixou-se embriagar pelas labaredas alaranjadas e azuis, que produzia um clima inebriante de paz, muito convidativo aos solitários como ela. Rodeou-se de seus livros prediletos, e com um cobertor sobre os joelhos estendido até os pés, ela se aconchegou na poltrona que um dia pertenceu a seu finado marido. E foi ficando ali, até que o fogo tremulante e tímido foi apagando as sombras daquele cenário e transformando-se apenas em cinzas.
Ela foi encontrada na poltrona ainda, dois dias depois, pelo jornaleiro, que ao se achegar perto da soleira da porta para deixar a notícia e resgatar o pagamento que sempre o esperava sob o capacho, avistou a edição anterior esquecida ali, e o pagamento simplesmente suspenso. Foi então que sentiu um odor desagradável vindo do interior da casa e chamou as autoridades.

Suas obras póstumas foram enfim publicadas, e também sacramentadas. Ganhava adeptos na mesma velocidade com que a vida passa sem que se perceba. E ela sentiu-se surpresa e muito feliz do outro lado, ao constatar a recepção e o sucesso do seu doce trabalho.

©Por Lilly Araújo - 31/05/2011 - Direitos Autorais Reservados.

Publicado na Antologia  Albergue dos  Poetas-ALBA

Reconstrução



Reconstrução

Apeteceu-lhe o paladar olhar aquela figura que há poucos minutos atrás se apresentava com tanta virilidade, agora imóvel, exausta e já sem sinal de vitalidade alguma.
Para acalmar os ânimos de seu interior ainda sedento, saiu sorrateiramente da cama e abriu a porta de correr que dava para varanda. Era noite quente. Sentiu o contraste em sua tez, quando uma brisa com cheiro de mar fresco alcançou-lhe, e atrevidamente percorreu o seu corpo seminu, protegido apenas pelo camisão abotoado displicentemente.
Lembrou-se de seu pai, que a levava quando criança, para descobrir as diversas formas de vidas encravadas na areia da praia. Lá construíam castelos juntos, bem ao alcance das ondas, e assim podiam ficar horas e horas na arte de construir e reconstruí-los, logo que as águas salgadas faziam a vez de demolidor. Era sempre uma nova perspectiva da criação, e uma nova realização pessoal do criador que há dentro de cada ser humano. Ela aprendera muito com esse grande homem que fora seu pai, principalmente a lição de se levantar diante de qualquer queda, fosse o tamanho que fosse, e de suportar a perda, ainda que de alguém que se amasse descomedidamente, como ela sempre o amou, mas um dia teve que dizer adeus.
Distraída em seu mundo de lembranças e sentimentos, não notou quando um inseto se arrastou próximo de seus pés, mas assim que percebeu que se tratava de uma temível e asquerosa barata, perdeu-se de sua nostalgia instantaneamente. De início só conseguiu sentir pavor, mas isso se transformou em asco e logo em seguida em indignação e raiva. Sem pestanejar, deu-lhe uma pisada de calcanhar, e pode sentir o exoesqueleto do inseto trincando debaixo de seu pé descalço, liberando todo o conteúdo esbranquiçado e mal cheiroso.
Em qualquer outro dia, diante dessa situação, teria saído correndo, vencida pelo medo daquela figura. Mas não hoje. Hoje era dia de reviravoltas, e de reconstruir até os próprios temores. Assim, como aprendera com seu falecido pai.
Refeita do susto, resolveu tomar um banho morno. Deixou que a água lavasse não somente o corpo, mas também a sua alma vingada.
Voltou para cama e tomou posse daquele corpo ainda entorpecido. Usou de seus artifícios mais femininos e predadores e elevou em instantes a libido daquele ser agora totalmente indefeso e entregue à própria sorte. Outro dia qualquer, ela teria sido apenas passiva, submissa e tímida. Mas não hoje. Hoje era dia de reviravoltas, e de reconstruir até seus próprios pudores.

Gemeu. Suou. Contorceu-se. E reconstruiu seus laços com aquele ser que tanto desejava. Finalmente pôde enfim se sentir reconstruída. Sentir-se mulher.

Lilly Araújo

Publicado na Antologia : Albergue dos Poetas, da ALBA. 2014.