Apertou suavemente o objeto de vidro contra
os lábios. Sentiu-lhe o tato frio e o paladar consoante, enquanto o líquido
negro percorria suas entranhas e conhecia-lhe por dentro, proporcionando-lhe um
afago que há muito não sentia de qualquer alma viva que fosse. O calor do
alimento se contrapunha a tudo que acabara de sentir, mas também lhe causava
uma sensação de estar recebendo um caloroso abraço. Sorriu de si mesma. Não
soube ao certo se o riso fora causado pela estranheza das sensações, ou se
porque simplesmente se reservasse no direito de se sentir feliz, por qual
motivo fosse.
Alimentada, voltou à sua reclusão
taciturna. Embrenhou-se entre as pilhas de papéis multiformes. Alguns pautados,
outros apenas brancos, a olhar para ela e esperar o seu toque que lhes
colocariam nódoas de uma particularidade ímpar.
Era assim que era o relacionamento
íntimo e quase indescritível que ela mantinha com aquele cômodo, que era mais
que um escritório. Lá ela passava quase todos os momentos de seu estado
produtivo. Ademais, ou estava no banho, ou estava comendo, ou dormindo.
Avessa ao exterior de sua clausura, já
nem se lembrava mais do sol de outono, o havia abandonado há muitos anos, e
também à imensa lua, que antes exercia sobre ela um poder avassalador,
arrancando-lhe suspiros e sentimentos que agora, preferia nem considerar que
existissem.
Não era gorda e nem tampouco magra. Era
muito bonita, não fosse pelo olhar baço que trazia diuturnamente, seria
considerada uma atração irresistível a qualquer macho de sua espécie. Mas ela
prosseguia como se não tivesse noção da sua beleza, ou qualquer pretensão de
tirar alguma vantagem disso. Ignorava os espelhos ou as maquiagens. Contrariava
qualquer manual de feminilidade, suprimindo a vaidade impregnada em seus genes.
Nada a fazia feliz não tivesse folhas e
letras. Tudo no seu mundo era o mundo inventado por alguém, e transcrito nas
histórias que lia, relia e se deliciava. E ela mesma aprendera a criar o seu
próprio mundo, feito de paredes sólidas de grafite, tijolos de letras, tetos de
imaginação, e jardins de poesias. Onde colhia uma a uma as flores que a
literatura lhe oferecia.
Era esse o seu trabalho. Era essa a sua
vida. Vivia no mundo das palavras e sobrevivia nas entrelinhas.
Não tinha inimigos declarados, e amigos,
não os tinha, nenhuns. E não lhe fazia falta, pois em seu ofício, não poderia
se dar ao luxo de ficar no portão jogando palavras ao vento com uma vizinha
qualquer. Seria um crime. Não poderia jamais! Reservava cada inspiração e cada
pensamento para criar a sua obra-prima.
Com o suor de seus dedos, escorrendo
pela lapiseira, muitas vezes, ela viu a sua obra ir criando forma. Não
desperdiçava qualquer letra que fosse e já estava até desacostumada a
verbalizar. As suas cordas vocais se apegavam umas às outras, sentindo-se
inúteis e desnecessárias. Acordadas vez ou outra apenas por um “ai” que lhe
denunciava as dores musculares que sentia, causadas pela inércia de seu corpo
bem torneado, mas totalmente obsoleto às suas necessidades habituais. E exceto
pela mão, não movia quase nada, quase o tempo todo. Era assim o seu trabalho.
Era assim a vida que adotara para si, sem se preocupar com nenhuma oposição dos
familiares ou imposição alheia.
E ela passou por sua juventude
inadvertidamente, apenas criando e criando. Ninguém tinha acesso aos seus
textos. Não se iludia em ganhar qualquer reconhecimento, e era avessa a
concursos literários ou qualquer forma de publicação que a expusesse diante de
olhos curiosos e críticas. Não se submeteria a qualquer julgamento. Seus textos
eram mais que palavras grafadas, eram a construção de sua alma. Eram sagrados!
Ficavam seguros na sala silenciosa que lhes aconchegavam, mantendo-os em
segurança. Ali era o seu santuário.
Numa tarde de inverno, ela sentou-se com
certa dificuldade diante da lareira e deixou-se embriagar pelas labaredas
alaranjadas e azuis, que produzia um clima inebriante de paz, muito convidativo
aos solitários como ela. Rodeou-se de seus livros prediletos, e com um cobertor
sobre os joelhos estendido até os pés, ela se aconchegou na poltrona que um dia
pertenceu a seu finado marido. E foi ficando ali, até que o fogo tremulante e
tímido foi apagando as sombras daquele cenário e transformando-se apenas em
cinzas.
Ela foi encontrada na poltrona ainda,
dois dias depois, pelo jornaleiro, que ao se achegar perto da soleira da porta
para deixar a notícia e resgatar o pagamento que sempre o esperava sob o
capacho, avistou a edição anterior esquecida ali, e o pagamento simplesmente
suspenso. Foi então que sentiu um odor desagradável vindo do interior da casa e
chamou as autoridades.
Suas obras póstumas foram enfim
publicadas, e também sacramentadas. Ganhava adeptos na mesma velocidade com que
a vida passa sem que se perceba. E ela sentiu-se surpresa e muito feliz do
outro lado, ao constatar a recepção e o sucesso do seu doce trabalho.
©Por Lilly Araújo - 31/05/2011
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Publicado na Antologia Albergue dos Poetas-ALBA