Os
dois livros
03 de Março de 2065. Estou
muito doente. Não sei quanto tempo ainda irei aguentar, e já não me esforço
mais para resistir. Na verdade, muita gente desiste a cada momento. O ar está
mal cheiroso de tanto cadáver pendurado pelo pescoço por aqui. Mas há os que
simplesmente assistem a tudo calados e perplexos, dos quais se ouve apenas os
gemidos. E há ainda os que de algum modo carregam uma esperança dentro de si, a
este chamamos de “peixes” por causa do símbolo em forma desse animal que eles usam.
Esse povo estranho carrega certo
brilho no olhar cada vez mais incomum de se ver. Um dia desses uma das
menininhas do grupo trouxe um pedacinho de papel escrito à mão, sentou-se perto
de mim e começou a ler baixinho. Perguntei o que era e ela disse que era um
trecho das sagradas escrituras, e logo me perguntou se eu não gostaria de
ouvir. Era tanta meiguice em sua voz que não pude resistir. Desde então, o
grupo deles tem se aproximado mais de mim e tenho ouvido suas histórias sobre o
fim do mundo escritas no livro de Apocalipse.
Antes de toda essa tragédia
começar eu jamais teria tempo para esse tipo de leitura ou assunto. Considerava
todos os religiosos uns charlatões ou uns alienados. Mas agora, rodeada de
tanto estrago e caos instalado, não podia negar que algo estranho neles os
fazia diferente de mim e dos demais. Não custava tentar descobrir o que era,
afinal, eu não tinha nada mais importante a fazer do que simplesmente continuar
sobrevivendo por mais um dia.
***
05 de Julho de 2066. Muita
coisa mudou até aqui desde o dia em que perdi minha casa e meus familiares. Aquela
noite que prefiro não lembrar, mas ao mesmo tempo não me sai da cabeça um só
segundo, e está em todos os meus pesadelos.
De um ano para cá me sinto
menos angustiada e só. Agora faço parte do grupo dos “peixes”, que preferem ser
chamados apenas de cristãos. Hoje entendo que tudo que eu sabia sobre eles e
sobre a Bíblia estava totalmente distorcido. Nesses dias maus, ninguém tem
tempo ou motivo para ficar brincando de religioso ou dono do “passe” para o céu,
e a leitura tem me aberto os olhos, enquanto que a verdadeira paz tem se
instalado dentro de mim. Fora isso, cada dia é mais triste e mais difícil. O
mundo já não é como um dia eu conheci.
Esta semana começamos a
leitura do livro de Apocalipse. Tem um professor mais velho que eu que nos
ajuda a interpretar algumas partes. Mas ele me explicou que este livro é muito
cheio de simbolismo, e que nunca poderemos saber o que realmente significa até
realmente acontecer.
Pelo estado atual da Terra,
acredito que pelo menos alguns dos tais selos já foram abertos. É muita fome e
guerra. Muitos terremotos e tsunamis. Vazamentos de usinas nucleares. Enchentes
afogando muita gente, enquanto outras morrem devido à longa seca. Não tem
ninguém no poder que não tenha se corrompido. As nações já não falam mais em
paz. Muitos países declararam falência econômica, enquanto outros se beneficiam
disso com dentes em largos sorrisos.
Prostituição virou quase
regra nos lugares mais afetados pela miséria, é o único jeito de ainda não
morrer. Algumas mães estão devorando os próprios filhos. Alguns filhos estão
devorando suas próprias mães.
Com certeza alguns desses
selos já devem ter sido abertos. Mas talvez ainda estejamos longe do fim. Porque
em partes isoladas existe muita gente bilionária que simplesmente finge não
estar vendo o que esta nos acontecendo. Eles continuam no esquema de cassinos,
carros de mais de milhão, e comidas regadas a ouro em pó. Coisas malucas! Com
certeza pessoas como essas estão tomadas por algum espírito ruim. Nada explica
tamanho egoísmo em um ser humano! Fecham os olhos. Se afundam em plásticas e
gastos sem sentido. Enquanto seus semelhantes, como eu, não tem o básico para
subsistência.
Com certeza alguns dos selos
já foram abertos. Mas talvez ainda demore um pouco a chegar o fim do mundo. Por
enquanto, o máximo que admitem, é que ignoraram os avisos de tanta poluição e o
aquecimento global fez bastante estrago. Mas ainda é pouco para os que podem usar
subterfúgios porque possuem dinheiro para pagar.
***
13 de Maio de 2067. Sinto-me
mais fraca agora que o inverno se aproxima. Talvez eu não passe desse. Por
outro lado entendi que chegar até aqui foi uma dádiva dos céus. Nada que eu
tivesse visto ou vivido teria sentido se terminasse antes de eu ter conhecido o
sentido real de estar aqui nesta terra. Ter sido resgatada pelo conhecimento do
livro mágico que salvou minha vida para além dessa. Agora eu tenho um motivo
para atravessar a ponte que nos leva ao outro lado...
***
– Willian, venha ver o que
achei aqui.
– Espero que seja algo que
alimente!
– São dois livros. Veja, um é
grosso de capa preta, o outro rosa, parecendo um diário.
– Poxa, gostaria que fosse algo
que salvasse as nossas vidas, e não um monte de letras bobas.
– Talvez haja algo nesses
livros que nos ajude de algum modo! Vejamos...
“03
de março de 2065. Estou muito doente...”.
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