terça-feira, 22 de novembro de 2011

Os dois livros



Os dois livros

03 de Março de 2065. Estou muito doente. Não sei quanto tempo ainda irei aguentar, e já não me esforço mais para resistir. Na verdade, muita gente desiste a cada momento. O ar está mal cheiroso de tanto cadáver pendurado pelo pescoço por aqui. Mas há os que simplesmente assistem a tudo calados e perplexos, dos quais se ouve apenas os gemidos. E há ainda os que de algum modo carregam uma esperança dentro de si, a este chamamos de “peixes” por causa do símbolo em forma desse animal que eles usam.
Esse povo estranho carrega certo brilho no olhar cada vez mais incomum de se ver. Um dia desses uma das menininhas do grupo trouxe um pedacinho de papel escrito à mão, sentou-se perto de mim e começou a ler baixinho. Perguntei o que era e ela disse que era um trecho das sagradas escrituras, e logo me perguntou se eu não gostaria de ouvir. Era tanta meiguice em sua voz que não pude resistir. Desde então, o grupo deles tem se aproximado mais de mim e tenho ouvido suas histórias sobre o fim do mundo escritas no livro de Apocalipse.
Antes de toda essa tragédia começar eu jamais teria tempo para esse tipo de leitura ou assunto. Considerava todos os religiosos uns charlatões ou uns alienados. Mas agora, rodeada de tanto estrago e caos instalado, não podia negar que algo estranho neles os fazia diferente de mim e dos demais. Não custava tentar descobrir o que era, afinal, eu não tinha nada mais importante a fazer do que simplesmente continuar sobrevivendo por mais um dia.

***

05 de Julho de 2066. Muita coisa mudou até aqui desde o dia em que perdi minha casa e meus familiares. Aquela noite que prefiro não lembrar, mas ao mesmo tempo não me sai da cabeça um só segundo, e está em todos os meus pesadelos.
De um ano para cá me sinto menos angustiada e só. Agora faço parte do grupo dos “peixes”, que preferem ser chamados apenas de cristãos. Hoje entendo que tudo que eu sabia sobre eles e sobre a Bíblia estava totalmente distorcido. Nesses dias maus, ninguém tem tempo ou motivo para ficar brincando de religioso ou dono do “passe” para o céu, e a leitura tem me aberto os olhos, enquanto que a verdadeira paz tem se instalado dentro de mim. Fora isso, cada dia é mais triste e mais difícil. O mundo já não é como um dia eu conheci.
Esta semana começamos a leitura do livro de Apocalipse. Tem um professor mais velho que eu que nos ajuda a interpretar algumas partes. Mas ele me explicou que este livro é muito cheio de simbolismo, e que nunca poderemos saber o que realmente significa até realmente acontecer.
Pelo estado atual da Terra, acredito que pelo menos alguns dos tais selos já foram abertos. É muita fome e guerra. Muitos terremotos e tsunamis. Vazamentos de usinas nucleares. Enchentes afogando muita gente, enquanto outras morrem devido à longa seca. Não tem ninguém no poder que não tenha se corrompido. As nações já não falam mais em paz. Muitos países declararam falência econômica, enquanto outros se beneficiam disso com dentes em largos sorrisos.
Prostituição virou quase regra nos lugares mais afetados pela miséria, é o único jeito de ainda não morrer. Algumas mães estão devorando os próprios filhos. Alguns filhos estão devorando suas próprias mães.
Com certeza alguns desses selos já devem ter sido abertos. Mas talvez ainda estejamos longe do fim. Porque em partes isoladas existe muita gente bilionária que simplesmente finge não estar vendo o que esta nos acontecendo. Eles continuam no esquema de cassinos, carros de mais de milhão, e comidas regadas a ouro em pó. Coisas malucas! Com certeza pessoas como essas estão tomadas por algum espírito ruim. Nada explica tamanho egoísmo em um ser humano! Fecham os olhos. Se afundam em plásticas e gastos sem sentido. Enquanto seus semelhantes, como eu, não tem o básico para subsistência.
Com certeza alguns dos selos já foram abertos. Mas talvez ainda demore um pouco a chegar o fim do mundo. Por enquanto, o máximo que admitem, é que ignoraram os avisos de tanta poluição e o aquecimento global fez bastante estrago. Mas ainda é pouco para os que podem usar subterfúgios porque possuem dinheiro para pagar.

***

13 de Maio de 2067. Sinto-me mais fraca agora que o inverno se aproxima. Talvez eu não passe desse. Por outro lado entendi que chegar até aqui foi uma dádiva dos céus. Nada que eu tivesse visto ou vivido teria sentido se terminasse antes de eu ter conhecido o sentido real de estar aqui nesta terra. Ter sido resgatada pelo conhecimento do livro mágico que salvou minha vida para além dessa. Agora eu tenho um motivo para atravessar a ponte que nos leva ao outro lado...

***

– Willian, venha ver o que achei aqui.
– Espero que seja algo que alimente!
– São dois livros. Veja, um é grosso de capa preta, o outro rosa, parecendo um diário.
– Poxa, gostaria que fosse algo que salvasse as nossas vidas, e não um monte de letras bobas.
– Talvez haja algo nesses livros que nos ajude de algum modo! Vejamos...

“03 de março de 2065. Estou muito doente...”.


©Por Lilly Araújo - Direitos Autorais Reservados.

Publicado pela CBJE               


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