quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O “gato” maluco


O “gato” maluco



   Carlos já beirava os dezessete anos quando resolveu sair da casa de seu pai e ir morar com sua mãe. Talvez o motivo fosse o ciúme que lhe tomou quando a bela e jovem madrasta engravidou.
Não que sua mãe não o amasse, mas devido ao fato de suas condições financeiras serem milhares de vezes inferiores às do ex-marido, Cláudia preferia que o filho único tivesse uma vida mais abastada que a dela. Apesar de todos os argumentos, nada adiantou diante da decisão irredutível e conflituosa que Carlos impôs. Era mesmo um “cabeça dura” como o pai, ela pensava.
Quem não gostou nada nada da novidade foi o Sr. Francisco. Homem austero, mas muito apegado ao filho, não aceitava ficar longe assim tão de repente dele, fosse pela saudade ou por orgulho de perdê-lo exatamente para a mulher que fora o único verdadeiro amor de sua vida. O que também explicaria o fato de tê-la deixado em tamanha dificuldade financeira. Pirraça. Pura pirraça! Pirraça que, aliás, agora lhe retribuía o filho sem saber, por não aceitar perder o status de filho único que até hoje ocupava cheio de mimos e regalias.
Em protesto, estava resolvido a mudar sua vida radicalmente, abrindo mão de todo luxo a que estava acostumado, visto que o pai lhe recusara a ceder qualquer bem material para aquele traidor, que o estava abandonando. Posse. Pura posse! Sofriam de possessão crónica (acento circunflexo no português do Brasil né?), pai e filho.
Passados alguns dias da nova rotina, Carlos estava completamente entediado no seu novo lar. Não tinha mais o videogame de última geração, nem seu inseparável tablet que ainda estava com cheirinho de loja. Agora se contentava apenas com seu notebook, que seu pai só liberou por ter sido presente de aniversário, mas que nas atuais circunstâncias era quase inútil, porque lá não tinha internet. Não tinha piscina. Não tinha sauna. Nem tinha sua motinha ou amigos ricos. Não tinha sequer TV a cabo. Tédio. Puro tédio!
Até que numa tarde, Carlos estava sentado perto da janela, com vista nada privilegiada para os telhados dos vizinhos e num lance de olhar, notou uma antena de onde pendia um tremulante fio que partia telhado adentro do vizinho mais afortunado que ele. Teceu então um plano mirabolante em sua mente vazia. Iria fazer um “gato” para a TV que ficava em seu quarto.
Foi a uma lan house e procurou por manuais de instalação para realizar sua peripécia. – É impressionante o que se pode encontrar na net hoje em dia! – pensou o garoto. Pesquisou. Revisou. Imprimiu. E marcou o dia, ou a noite, para o leitor melhor entender.
Carlos se esgueirou pelo corredor apertado com o cinto de ferramentas pendendo-lhe de um dos lados e forçando a calça larga para baixo. Todo desengonçado e tremendo um pouco, o garoto alcançou a tal antena por sobre o telhado. Sentiu-se um felino aventurando-se naquela altitude. Em poucos minutos, seguindo o manual passo a passo, ele cortou e remendou fios na caixinha conectora que comprou num ferro velho, e que iria piratear e retransmitir o sinal para sua TV, dando um pouco de vida para sua nova vida.
Desceu sem maiores dificuldades. Mas não antes de se engarranchar no último trecho do seu percurso e ralar todo o antebraço esquerdo. Valeria o preço se o “gato” funcionasse, argumentou a si mesmo para aliviar o ardor. Ligou a TV com o coração na mão. E lá estava a imagem que o salvou de seu martírio! Dezenas de canais, que agora o manteriam cativo por vontade própria no seu pequeno “quarto-cela”.
Mas, numa noite de tempestade e muitos raios, a conexão de alegria do pobre Carlos foi subitamente interrompida. Ele ficou chocado. Desespero. Puro desespero!
Na manhã seguinte foi à escola brigado com sua TV. Havia gastado toda madrugada fuçando, sacudindo, torcendo e pedindo aos céus por um auxílio. Quando retornou, já na hora do almoço, esquentou a comida e engoliu desinteressadamente. Pulou na cama e dormiu, exausto que estava. Acordou com um barulho e uns feixes de luzes vindas do telhado do “vizinho-sócio”. Achou estranho aquilo e teve medo. Será que agora o seu delito seria descoberto? Resolveu ligar a TV por pura curiosidade, e para sua surpresa os canais estavam todos de volta.
Foi à cozinha e fez pipoca para esperar pelo jogo do seu time que iria começar em dez minutos. Enquanto assistia ao jogo vibrante e comia pipoca, um sorriso de orelha a orelha não lhe saía do rosto. De repente, um lance dentro da grande área, já aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, dava chance ao seu time de ser o vencedor. Ele se colocou debaixo do monitor, se contorcendo à espera de um milagre para que aquele gol saísse, e no auge da expectativa de vitória do seu timão: “Tssss”! Alguém mudou o canal da televisão.
– Não! Não! Não! Isso não pode estar acontecendo! – Não podia, mas estava.


***

A partir daquele dia era essa a vida de Carlos: No meio do filme, na cena do beijo, e “tsss!”, o canal mudava. Quando finalmente estavam pegando o serial killer, “tsss!”... Ele passou a ter memórias fragmentadas de tudo que assistia. Frustração. Pura frustração!
E Carlos nem imaginava o quanto aquilo influenciaria a sua mente. Agora ele andava todo interrompido. Fazia as lições pela metade. Comia metade da comida. E um dia até chegou à escola com apenas um dos pés calçado. A namorada rompeu com ele, se recusava a ter meio namorado. E boletim escolar passou a vir com notas medianas. Até a mesada dele foi reduzida a meia, reflexo de seus últimos desempenhos.
Agora aquele “meio garoto” não conseguia ter uma ideia por inteiro para restaurar a sua vida desconfigurada.
– Francisco, você precisa levar nosso filho ao médico. Estou muito preocupada.
– Besteira. Isso é artimanha dele para eu voltar atrás. Mas não volto! Onde já se viu, fazer um desaforo desses com a Lucinda grávida? Justo ela que sempre o tratou como um filho. Não volto!

Mesmo com o problema, Carlos continuou a ficar no seu quarto todo tempo. Em frente à TV desgovernada, concentrado em meias imagens. Estava meio triste, meio desiludido e meio arrependido de ter deixado sua outra casa. Descompletado!
Foi aí então que algo iluminou sua mente por inteiro. Ele foi atrás do seu pai e lhe estendeu uma bandeira branca. Pediu sinceras desculpas em palavras que enterneceram o coração paterno de Francisco, e no embalo das emoções intercedeu por sua mãe junto ao pai, e conseguiu que ele se comprometesse em dar todos os direitos aos bens financeiros dela, na época sonegados.
Carlos comprou ainda flores para a madrasta e presentes para o bebê. Que torceu para ser uma menina. Estava mudado, mas nem tanto! Queria continuar ao menos a ser o único varão da casa.

Tudo resolvido naquela família. Parecia até um milagre! E talvez fosse mesmo um tipo de milagre para restaurar tantos conflitos antigos. Foi o “gato” maluco. Puro “gato”!




© Por Lilly Araújo -15/05/2011 - Direitos Autorais Reservados.

Prêmio de  DESTAQUE no Concurso Claudionor Ribeiro de Contos.
Selecionado para compor a Revista SAMIZADAT
Acesse o link para baixar o pdf de graça: Scribd





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5 comentários:

  1. Gostei do conto, Lilly. Gostaria de ler um conto que fiz e dizer se és bom? Pretendo enviá-lo para um concurso. Também faço parte da Concursos literários.

    Qualquer coisa: thiago.jefferson@hotmail.com

    Abs.

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  2. Vc escreve bem, mocinha, interessante a maneira de encaixar os fatos. Gostei muito, bjos.

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    1. Dario B.

      Muito obrigada, comecei a escrever brincando, quando eu aprender de verdade faço um livro e te mando um.

      obrigada!!

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  3. Adorei!

    Muito criativa a história - foge da lógica habitual.

    O "encaixe dos fatos", como disse o Dário, fixa o leitor ao texto.

    Só achei que o final poderia ter sido mais bem trabalhado; o encerramento é muito rápido.

    Parabéns, Lilly!

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    1. Muito obrigada Diego,

      Mas já vou avisando que sou nova nessa área, esse é um dos meus primeiros dos poucos contos que já escrevi, com o tempo quem sabe eu consiga ir melhorando..

      Beijos!

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