terça-feira, 22 de novembro de 2011

Os dois livros



Os dois livros

03 de Março de 2065. Estou muito doente. Não sei quanto tempo ainda irei aguentar, e já não me esforço mais para resistir. Na verdade, muita gente desiste a cada momento. O ar está mal cheiroso de tanto cadáver pendurado pelo pescoço por aqui. Mas há os que simplesmente assistem a tudo calados e perplexos, dos quais se ouve apenas os gemidos. E há ainda os que de algum modo carregam uma esperança dentro de si, a este chamamos de “peixes” por causa do símbolo em forma desse animal que eles usam.
Esse povo estranho carrega certo brilho no olhar cada vez mais incomum de se ver. Um dia desses uma das menininhas do grupo trouxe um pedacinho de papel escrito à mão, sentou-se perto de mim e começou a ler baixinho. Perguntei o que era e ela disse que era um trecho das sagradas escrituras, e logo me perguntou se eu não gostaria de ouvir. Era tanta meiguice em sua voz que não pude resistir. Desde então, o grupo deles tem se aproximado mais de mim e tenho ouvido suas histórias sobre o fim do mundo escritas no livro de Apocalipse.
Antes de toda essa tragédia começar eu jamais teria tempo para esse tipo de leitura ou assunto. Considerava todos os religiosos uns charlatões ou uns alienados. Mas agora, rodeada de tanto estrago e caos instalado, não podia negar que algo estranho neles os fazia diferente de mim e dos demais. Não custava tentar descobrir o que era, afinal, eu não tinha nada mais importante a fazer do que simplesmente continuar sobrevivendo por mais um dia.

***

05 de Julho de 2066. Muita coisa mudou até aqui desde o dia em que perdi minha casa e meus familiares. Aquela noite que prefiro não lembrar, mas ao mesmo tempo não me sai da cabeça um só segundo, e está em todos os meus pesadelos.
De um ano para cá me sinto menos angustiada e só. Agora faço parte do grupo dos “peixes”, que preferem ser chamados apenas de cristãos. Hoje entendo que tudo que eu sabia sobre eles e sobre a Bíblia estava totalmente distorcido. Nesses dias maus, ninguém tem tempo ou motivo para ficar brincando de religioso ou dono do “passe” para o céu, e a leitura tem me aberto os olhos, enquanto que a verdadeira paz tem se instalado dentro de mim. Fora isso, cada dia é mais triste e mais difícil. O mundo já não é como um dia eu conheci.
Esta semana começamos a leitura do livro de Apocalipse. Tem um professor mais velho que eu que nos ajuda a interpretar algumas partes. Mas ele me explicou que este livro é muito cheio de simbolismo, e que nunca poderemos saber o que realmente significa até realmente acontecer.
Pelo estado atual da Terra, acredito que pelo menos alguns dos tais selos já foram abertos. É muita fome e guerra. Muitos terremotos e tsunamis. Vazamentos de usinas nucleares. Enchentes afogando muita gente, enquanto outras morrem devido à longa seca. Não tem ninguém no poder que não tenha se corrompido. As nações já não falam mais em paz. Muitos países declararam falência econômica, enquanto outros se beneficiam disso com dentes em largos sorrisos.
Prostituição virou quase regra nos lugares mais afetados pela miséria, é o único jeito de ainda não morrer. Algumas mães estão devorando os próprios filhos. Alguns filhos estão devorando suas próprias mães.
Com certeza alguns desses selos já devem ter sido abertos. Mas talvez ainda estejamos longe do fim. Porque em partes isoladas existe muita gente bilionária que simplesmente finge não estar vendo o que esta nos acontecendo. Eles continuam no esquema de cassinos, carros de mais de milhão, e comidas regadas a ouro em pó. Coisas malucas! Com certeza pessoas como essas estão tomadas por algum espírito ruim. Nada explica tamanho egoísmo em um ser humano! Fecham os olhos. Se afundam em plásticas e gastos sem sentido. Enquanto seus semelhantes, como eu, não tem o básico para subsistência.
Com certeza alguns dos selos já foram abertos. Mas talvez ainda demore um pouco a chegar o fim do mundo. Por enquanto, o máximo que admitem, é que ignoraram os avisos de tanta poluição e o aquecimento global fez bastante estrago. Mas ainda é pouco para os que podem usar subterfúgios porque possuem dinheiro para pagar.

***

13 de Maio de 2067. Sinto-me mais fraca agora que o inverno se aproxima. Talvez eu não passe desse. Por outro lado entendi que chegar até aqui foi uma dádiva dos céus. Nada que eu tivesse visto ou vivido teria sentido se terminasse antes de eu ter conhecido o sentido real de estar aqui nesta terra. Ter sido resgatada pelo conhecimento do livro mágico que salvou minha vida para além dessa. Agora eu tenho um motivo para atravessar a ponte que nos leva ao outro lado...

***

– Willian, venha ver o que achei aqui.
– Espero que seja algo que alimente!
– São dois livros. Veja, um é grosso de capa preta, o outro rosa, parecendo um diário.
– Poxa, gostaria que fosse algo que salvasse as nossas vidas, e não um monte de letras bobas.
– Talvez haja algo nesses livros que nos ajude de algum modo! Vejamos...

“03 de março de 2065. Estou muito doente...”.


©Por Lilly Araújo - Direitos Autorais Reservados.

Publicado pela CBJE               


segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Crime Passional


 Crime passional

É interessante, ou às vezes apavorante, constatar como os sentimentos regem a humanidade. São seres superiores equiparados aos outros seres. Prova maior disso é estarem no topo da cadeia alimentar, e não poucas vezes, devorarem tudo o que encontram pela frente. Mas ainda assim, estão todos eles, propensos a se tornarem vítimas e presas de suas próprias atitudes, que por sua vez, são regidas por sentimentos que os acomete na fragilidade de seu ser.
Um exemplo gritante é a paixão. Hoje, cresce ininterruptamente a lista de crimes passionais. Onde o réu é tão vítima quanto o próprio defunto. Aliado a esse sentimento, e que dá força para que se chegue a tal extremo, está o medo. O medo de se ficar só, o medo da rejeição, o medo de não conseguir continuar, o medo do não pertencimento, o medo de ser esquecido e substituído. Tantos medos!
Nesses tempos frenéticos, de cidadãos tão competitivos e inseguros, gerados normalmente pela imposição do capitalismo, voto que o mal do século passe a se chamar medo.
O chefe de família já acorda com medo das faturas por vencer. Dirige-se ao trabalho com medo de assalto, ou sequestro relâmpago, ou similar. Trabalha sobre a pressão constante de perder seu cargo para alguém mais jovem e menos caro para empresa. Retorna para casa. Exausto. Trânsito. Assalto. Sequestro. Medo.
Passa pelo portão sobressaltado, não se acalma até que consiga ver suas duas filhas bem. Passou o dia temendo que algum maluco adentrasse ao colégio e descarregasse várias vezes sua fúria em forma de balas nos pobres e indefesos alunos. É nesse instante de alívio momentâneo que pousa os olhos sobre a esposa, que o faz esquecer quaisquer sentimentos que não o de aconchego, no hálito quente de boa noite de sua amada cúmplice.
No fim da noite está mais morto que vivo. Exaurido pelo medo que sentiu o dia todo, vira para o lado e dorme, sem condições para mais nada. Então, sua esposa esquecida, outra vez, no canto do leito, também sente medo. Medo de não apetecer mais o marido, de ter perdido o sabor. Medo de estar sendo traída. Medo de não descobrir. Medo de descobrir. E o que poderia fazer quando enfim descobrisse?
Assim, a madrugada desliza rapidamente, em meio a latidos e uivos de cachorros soltos nas ruas, enquanto a pobre insone mulher planeja e desplaneja sua vida, baseada em seus medos.
Talvez acorde e cometa um crime passional. Por puro medo!

©Por Lilly Araújo - 31/05/2011 - Direitos Autorais Reservados.

#Classificada para compor a Antologia no

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O “gato” maluco


O “gato” maluco



   Carlos já beirava os dezessete anos quando resolveu sair da casa de seu pai e ir morar com sua mãe. Talvez o motivo fosse o ciúme que lhe tomou quando a bela e jovem madrasta engravidou.
Não que sua mãe não o amasse, mas devido ao fato de suas condições financeiras serem milhares de vezes inferiores às do ex-marido, Cláudia preferia que o filho único tivesse uma vida mais abastada que a dela. Apesar de todos os argumentos, nada adiantou diante da decisão irredutível e conflituosa que Carlos impôs. Era mesmo um “cabeça dura” como o pai, ela pensava.
Quem não gostou nada nada da novidade foi o Sr. Francisco. Homem austero, mas muito apegado ao filho, não aceitava ficar longe assim tão de repente dele, fosse pela saudade ou por orgulho de perdê-lo exatamente para a mulher que fora o único verdadeiro amor de sua vida. O que também explicaria o fato de tê-la deixado em tamanha dificuldade financeira. Pirraça. Pura pirraça! Pirraça que, aliás, agora lhe retribuía o filho sem saber, por não aceitar perder o status de filho único que até hoje ocupava cheio de mimos e regalias.
Em protesto, estava resolvido a mudar sua vida radicalmente, abrindo mão de todo luxo a que estava acostumado, visto que o pai lhe recusara a ceder qualquer bem material para aquele traidor, que o estava abandonando. Posse. Pura posse! Sofriam de possessão crónica (acento circunflexo no português do Brasil né?), pai e filho.
Passados alguns dias da nova rotina, Carlos estava completamente entediado no seu novo lar. Não tinha mais o videogame de última geração, nem seu inseparável tablet que ainda estava com cheirinho de loja. Agora se contentava apenas com seu notebook, que seu pai só liberou por ter sido presente de aniversário, mas que nas atuais circunstâncias era quase inútil, porque lá não tinha internet. Não tinha piscina. Não tinha sauna. Nem tinha sua motinha ou amigos ricos. Não tinha sequer TV a cabo. Tédio. Puro tédio!
Até que numa tarde, Carlos estava sentado perto da janela, com vista nada privilegiada para os telhados dos vizinhos e num lance de olhar, notou uma antena de onde pendia um tremulante fio que partia telhado adentro do vizinho mais afortunado que ele. Teceu então um plano mirabolante em sua mente vazia. Iria fazer um “gato” para a TV que ficava em seu quarto.
Foi a uma lan house e procurou por manuais de instalação para realizar sua peripécia. – É impressionante o que se pode encontrar na net hoje em dia! – pensou o garoto. Pesquisou. Revisou. Imprimiu. E marcou o dia, ou a noite, para o leitor melhor entender.
Carlos se esgueirou pelo corredor apertado com o cinto de ferramentas pendendo-lhe de um dos lados e forçando a calça larga para baixo. Todo desengonçado e tremendo um pouco, o garoto alcançou a tal antena por sobre o telhado. Sentiu-se um felino aventurando-se naquela altitude. Em poucos minutos, seguindo o manual passo a passo, ele cortou e remendou fios na caixinha conectora que comprou num ferro velho, e que iria piratear e retransmitir o sinal para sua TV, dando um pouco de vida para sua nova vida.
Desceu sem maiores dificuldades. Mas não antes de se engarranchar no último trecho do seu percurso e ralar todo o antebraço esquerdo. Valeria o preço se o “gato” funcionasse, argumentou a si mesmo para aliviar o ardor. Ligou a TV com o coração na mão. E lá estava a imagem que o salvou de seu martírio! Dezenas de canais, que agora o manteriam cativo por vontade própria no seu pequeno “quarto-cela”.
Mas, numa noite de tempestade e muitos raios, a conexão de alegria do pobre Carlos foi subitamente interrompida. Ele ficou chocado. Desespero. Puro desespero!
Na manhã seguinte foi à escola brigado com sua TV. Havia gastado toda madrugada fuçando, sacudindo, torcendo e pedindo aos céus por um auxílio. Quando retornou, já na hora do almoço, esquentou a comida e engoliu desinteressadamente. Pulou na cama e dormiu, exausto que estava. Acordou com um barulho e uns feixes de luzes vindas do telhado do “vizinho-sócio”. Achou estranho aquilo e teve medo. Será que agora o seu delito seria descoberto? Resolveu ligar a TV por pura curiosidade, e para sua surpresa os canais estavam todos de volta.
Foi à cozinha e fez pipoca para esperar pelo jogo do seu time que iria começar em dez minutos. Enquanto assistia ao jogo vibrante e comia pipoca, um sorriso de orelha a orelha não lhe saía do rosto. De repente, um lance dentro da grande área, já aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, dava chance ao seu time de ser o vencedor. Ele se colocou debaixo do monitor, se contorcendo à espera de um milagre para que aquele gol saísse, e no auge da expectativa de vitória do seu timão: “Tssss”! Alguém mudou o canal da televisão.
– Não! Não! Não! Isso não pode estar acontecendo! – Não podia, mas estava.


***

A partir daquele dia era essa a vida de Carlos: No meio do filme, na cena do beijo, e “tsss!”, o canal mudava. Quando finalmente estavam pegando o serial killer, “tsss!”... Ele passou a ter memórias fragmentadas de tudo que assistia. Frustração. Pura frustração!
E Carlos nem imaginava o quanto aquilo influenciaria a sua mente. Agora ele andava todo interrompido. Fazia as lições pela metade. Comia metade da comida. E um dia até chegou à escola com apenas um dos pés calçado. A namorada rompeu com ele, se recusava a ter meio namorado. E boletim escolar passou a vir com notas medianas. Até a mesada dele foi reduzida a meia, reflexo de seus últimos desempenhos.
Agora aquele “meio garoto” não conseguia ter uma ideia por inteiro para restaurar a sua vida desconfigurada.
– Francisco, você precisa levar nosso filho ao médico. Estou muito preocupada.
– Besteira. Isso é artimanha dele para eu voltar atrás. Mas não volto! Onde já se viu, fazer um desaforo desses com a Lucinda grávida? Justo ela que sempre o tratou como um filho. Não volto!

Mesmo com o problema, Carlos continuou a ficar no seu quarto todo tempo. Em frente à TV desgovernada, concentrado em meias imagens. Estava meio triste, meio desiludido e meio arrependido de ter deixado sua outra casa. Descompletado!
Foi aí então que algo iluminou sua mente por inteiro. Ele foi atrás do seu pai e lhe estendeu uma bandeira branca. Pediu sinceras desculpas em palavras que enterneceram o coração paterno de Francisco, e no embalo das emoções intercedeu por sua mãe junto ao pai, e conseguiu que ele se comprometesse em dar todos os direitos aos bens financeiros dela, na época sonegados.
Carlos comprou ainda flores para a madrasta e presentes para o bebê. Que torceu para ser uma menina. Estava mudado, mas nem tanto! Queria continuar ao menos a ser o único varão da casa.

Tudo resolvido naquela família. Parecia até um milagre! E talvez fosse mesmo um tipo de milagre para restaurar tantos conflitos antigos. Foi o “gato” maluco. Puro “gato”!




© Por Lilly Araújo -15/05/2011 - Direitos Autorais Reservados.

Prêmio de  DESTAQUE no Concurso Claudionor Ribeiro de Contos.
Selecionado para compor a Revista SAMIZADAT
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terça-feira, 16 de agosto de 2011

Noite de inverno


Noite de inverno

Pegou o casaco no suporte logo atrás da porta e vestiu. Bebeu o último gole de seu Ballantines Finest. Olhou para seu bar particular e notou que só havia uma garrafa de Chivas Regal 18 Anos, o segundo em sua lista de apreciação. Mas àquela altura da embriagues, com certeza seu paladar não saberia distinguir entre nenhum dos dois maltes. Serviria. Colocou-a debaixo do braço, deu uma olhada para o porta-retratos em cima da mesa de centro. Tombado e trincado. Bateu a porta atrás de si.
O frio beirava os 10° graus Celsius, encolheu-se um pouco com o choque térmico que sentiu. Olhou para garagem e cogitou pegar seu Aston Marttin perfeito, mas não para aquela noite. Não combinava com o casaco. Tentou o Bugatti Veyron azul, competiria com a cor dos seus olhos. Talvez o Ford GT 40-1966 azul e laranja, mas sem motivo aparente declinou! Caminhou até a Mercedes-Benz SLR Mclaren prata. Achou a cor muito chata. A Ferrari 599 GTB Fiorano ainda não a havia usado este ano. Seu O Camaro SS Hennessey. Amarelo demais. E assim foi com mais dezenas deles em sua recheada garagem. Até que resolveu seguir a pé. O que era bem mais prudente, visto que seu reflexo era o que primeiro o havia abandonado depois das primeiras doses.
Acendeu seu charuto Punch Punch com o isqueiro maçarico da marca Colibri. A mesma que, em 1974, construiu o isqueiro-caneta-pistola que dava o nome ao filme: “007 Contra O Homem Da Pistola De Ouro” (“The Man with the Golden Gun”), para o vilão Scaramanga.
Odiava o cheiro que tinha aquela fumaça, mas aprendera que era chique fazê-lo. Acentuava seu status. Então não discutia entre suas duas vontades antagônicas, tão somente cedia à aparência. Hábito que lhe custava cada vez mais sacrifícios.

***

Andou a esmo por quadras e quadras daquela cidade tão iluminada. Parecia que poucos estavam tão bem dispostos quanto ele. O cenário lhe era comum: silêncio e solidão. Coisas que faziam parte do seu currículo já a bastante tempo, mais tempo do que ele conseguia calcular. E de tanto tempo suportando apenas a sua própria existência, não se sabia feliz ou infeliz. Havia perdido o conceito dessas duas palavras tão paradoxais, e que em algum momento de sua vida, já haviam sido experimentadas pelas sensações extremas daquele homem de quase quarenta anos.
Aos poucos a brasa suave consumia os últimos fragmentos da vitola do seu cubano. O efeito do álcool abandonava seu organismo. Era hora de abrir a garrafa nova. Talvez sentar-se na sarjeta e esquecer-se um pouco da sufocante etiqueta. Mas não seria dessa vez. Abandonou a garrafa ao pé de um poste de luz e torceu para que alguém fizesse bom proveito. Colocou as mãos no bolso e continuou sentindo o vento gelado riscar seu rosto, fazendo com que os olhos lacrimejassem forçosamente. Isso representava o mais próximo de chorar que lhe podia acontecer, visto que havia se tornado uma pessoa tão fria quanto aquela noite de quinta-feira.

***

De repente, uma mulher ainda com todos os encantos da juventude saiu de uma porta e se chocou com certa violência contra ele. Era como se ela se atirasse nos braços de seu super-herói enquanto estava sendo perseguida por um terrível vilão.
Atrás dela surgiu um homem plenamente embriagado, vociferando e tropeçando em seus próprios passos. Por certo não tinha intenções dóceis. Mas acabou vencido pelo próprio estado e caindo sobre a calçada, aos pés daquele casal recém-formado.
Ela era a encarnação de todos os melhores sonhos, e ainda dos piores pesadelos daquele homem estarrecido. Sua pele era tão branca como a mais branca neve, e lábios encarnados como de uma meretriz. Mas os olhos. Ah! Os olhos eram angelicais, e a voz era o coro em uníssono de todos os anjos do céu.

– Sou Lilly.
– Ro-Ro-Roger.
– Será que poderíamos sair daqui?
– Sim.

E seguiram no caminho oposto ao que ele esteve andando até agora. Rapidamente ela colocou-se a explicar o porquê de toda aquela situação constrangedora. E falava sem parar, enquanto ele estava apenas perdido em suas próprias lembranças. Atacado por seu doloroso passado.
Aquela mulher! Aquela maldita mulher que havia congelado seu coração ao partir. Aquela, que ele sequer se atrevia a pronunciar novamente o nome. Aquela que não havia deixado a possibilidade de mais ninguém em sua vida. Aquela mulher de alguma forma estava ali na sua frente. Havia descoberto o segredo de retroceder no tempo. Estava exatamente como há anos atrás. Não aparentava mais que vinte e poucos anos. Aquela mulher de sua alma.

– Acompanha-me até em casa?
– Mas é claro!

Apanharam um táxi. E costuraram ruas e ruas enquanto se conheciam.
Eles chegaram ao destino mais rápido que ele desejava. Viu uma casa muito requintada. A estrutura do imóvel e o modo dela de se expressar e de se vestir confirmavam suas suspeitas: ela também pertencia à alta sociedade. O que estaria fazendo naquele tipo de estabelecimento e em tão má companhia? Pensou por alguns instantes, para logo em seguida se lembrar do quanto ele próprio estivera em situações piores, por pura carência inconfessada.

***

Ela agradeceu pela ajuda e companhia.
Ele agarrou sua mão instintivamente.
Ela ofereceu um abraço e cedeu os lábios a um beijo.
O tempo parou naquele instante. De repente ele sentiu calor em ondas vulcânicas derreter todo o gelo dentro de si.
Ela o convidou para entrar...

Não era mais noite de inverno para aquele homem. Nunca mais inverno!

© Por Lilly Araújo-18/07/11 - Direitos Autorais Reservados.

Publicado na CBJE - RJ

sábado, 23 de julho de 2011

Um anjo diferente


Um anjo diferente

Lucas ostentava ainda uma barba longa e meio grisalha desde o choque daquele fim de semana. Parece que agora ele havia perdido o nexo entre a realidade e o místico, nesse ínterim não estava cuidando da aparência como era de costume. Homem vaidoso e metódico que era, estava irreconhecível.
Voltemos a um mês atrás, na fazenda de Lucas, na área de camping, na parte designada aos jogos de tiros, para ser mais preciso.
O avô das crianças, Sr. Antônio, estava sentado à sombra confortável de uma jabuticabeira naquela manhã de sol agradável enquanto vigiava o casal de netos menores, filhos de Pedro, que ora estavam tomando banho de mangueira, ora brincando no playground e ora brincando de construir coisas na areia. Já o primogênito Lucas, estava com a turminha mais velha, entre seus próprios filhos e todos os colegas convidados.
Era assim que eram todos os meses, pelo menos em um dos fins de semana para aquela família: descanso da cidade grande, jogos o dia todo, brincadeiras e, principalmente, a indispensável competição encravada nos genes masculinos.
Lucas herdou do pai, que herdou de seu pai, e assim por diante, o gosto inenarrável pela caça. Desde criança praticava esse ritual, e o pai lhe inculcou bem fundo o gosto e as técnicas de manejar as armas diversas que usavam durante seus acampamentos. Entre algumas das armas estavam o arco e flecha, o preferido de Lucas, mas ele também usava besta, rifles, espingardas e similares, e frequentemente participava de campeonatos de tiro ao alvo junto de seu irmão Pedro e de seus amigos, promovidos sempre pelo pai e companheiro Sr. Antônio.
Não poucas vezes, Lucas e o irmão voltavam para casa com bichos exóticos, exibindo-os como troféus. Diziam para pobre mãe que eles mesmos iriam preparar a janta, e aí estava armado o mesmo cenário: a mãe saía de estômago revirado em busca do responsável por aquele impasse.
 – Antônio, eu não vou mexer naqueles bichos horrorosos que estão lá na cozinha não.
– Eu já sei querida.
– Mas você vai mesmo saber preparar todos esses novos bichos estranhos? Uma hora vão acabar comendo algo intoxicante, e não digam que não avisei.
– Não se preocupe amor, papai me ensinou direitinho, vai dar tudo certo.
Então se seguia o mesmo ritual, os homens da casa na cozinha vivendo a segunda parte da aventura, que era preparar o jantar. Já a mãe, D. Alice, pedia logo uma pizza. Não arriscava nunca.
***
Com o tempo Lucas aperfeiçoou as técnicas de caça, mas com sua consciência totalmente ecológica, se viu obrigado a fazer adaptações, banindo de vez a caça esportiva de sua prática. Não achava justo com os pobres animais, que muitas vezes estavam até ameaçados de extinção. Trocou o prazer do alvo móvel por uma máquina atiradeira, e assim disputava com os companheiros de esporte, quem acertaria mais “bichos de barro”. Uma farra que era sempre barulhenta, sadia e politicamente correta.
Mas o fato de que falei no começo da história, ocorreu mesmo foi entre os alvos fixos daquela fazenda. Aqueles que ficavam pendurados numa espécie de tripé ou cavalete. Os enormes objetos redondos, cheios de linhas pretas concêntricas, ficavam ali pendurados, suportando os golpes de dezenas de balas e outras vezes flechas, dependendo do circuito do campeonato.
Naquele dia a disputa estava acirrada entre os jovens competidores. Na soma dos pontos havia três deles empatados e o quarto lugar só deixava uma distância mínima de dois pontos. Tudo estava delicioso e tenso.
Sr. Antônio vigiava os netos mais novos, como eu já disse antes, e num dado momento, Eduarda se levantou de repente e começou a liberar todo o conteúdo do seu intestino na sua roupa, que incapaz de contê-lo, deixou-o descer pelas suas pernas branquinhas de boneca do vovô. Ele a pegou nos braços todo atrapalhado, e como não tinha destreza para cuidar daquela situação de emergência, decidiu levá-la rapidamente para a casa principal onde as mulheres estavam reunidas. Elas sim saberiam o que fazer.
Mas nessa mexida toda, o pequeno Gabriel acabou sendo esquecido brincando sozinho na areia. O garoto era criativo que só, e assim que notou a orfandade instalada, tratou logo de sair pela área como um grande explorador. E na sua mente de criança, agora ele teria que se esconder pelas árvores e moitas, ou qualquer outra coisa que pudesse mantê-lo a salvo do avô que logo voltaria para capturá-lo.
E vejam só que ideia infeliz! Gabriel tratou de achar justamente um dos alvos para se esconder atrás. A sua altura dava exatamente no furo central da tábua circular, local conhecido como “mosca”. Por esse furo ele ficaria vigiando a chegada de qualquer inimigo que quisesse aprisioná-lo.
O circuito de tiros estava para começar. Os jovens terminavam de calibrar e carregar suas armas. Estavam eufóricos pelo resultado. Lucas se posicionou diante do alvo e como um pavão pomposo chamou a atenção dos rapazes. Ele empunhava sua arma com uma pose impecável e disse que os ensinaria como fazia um verdadeiro profissional de tiros. Apontou para frente, ensaiou um tiro perfeito e engatou o dedo no gatilho... TOW!
***
Nesse exato segundo ouviu-se um estrondo terrível seguido de gritos apavorados, uma correria desatinada de todos ali presentes. O caos estava instalado. Lá estava o corpo estendido no chão, ensanguentado.
Ninguém entendia bem o que aconteceu nos primeiros minutos. O fato é que o cachorro que a pouco dormia, agora atacava o dono verozmente. No começo Lucas pensou que o animal podia estar doente, mas quando avistou Gabriel sair pálido de trás do alvo que estava sob mira, entendeu na hora que aquilo que aconteceu foi coisa de outro mundo.
Seu dócil cão na verdade não estava doente, ele foi um anjo. Um anjo diferente! E que salvou aquela família de uma grande tragédia, e por fim, mudou não só o desfecho da história, mas os conceitos do cético Lucas.
Agora aquele homem andava a refletir sobre a existência de um mundo para além do que ele conhecia e cria até aquele tumultuado e místico dia.


© Por Lilly Araújo-21/06/2011-Direitos Autorais Reservados.


Publicado na CBJE-RJ

Dia Híbrido








Dia Híbrido

Hoje à tarde, enquanto eu repousava meus olhos no perdido do horizonte, sem procurar por nada, apenas tentando escapar daqueles instantes angustiosos do dia a dia que não chega a matar, mas por outro lado, tem um poder de ir sufocando-nos por dentro, como se quase conseguisse abrir a porta que dá passagem ao outro lado, e nos empurrar para onde todo mundo chega mais dia, menos dia. E tem uns dias que parece que até seria uma boa opção conhecer a “face oculta” da morte, mas há outros dias que a vida fica mais suave, psicodélica e até convidativa.
Hoje foi um dia híbrido. Não sei bem o que eu estava sentindo. Tantas notícias diversas de tantas vidas alheias. Fiquei absorta, vagando num ambiente perdido entre dois mundos.
Primeira surpresa e por assim dizer muito triste: Minha amiga de faculdade, que foi muito íntima, e muito importante durante os quatro anos em que nos graduávamos, enviuvou-se. Não que isso tenha idade certa, mas trinta e poucos, não me lembro exatamente, penso ser muito cedo para se passar por isso, e ainda mais que ela tem um filhinho pequeno e outro no ventre. Ainda assim a leucemia resolveu atravessar seu esposo para o outro lado. A notícia revirou minhas emoções. Nós duas já não temos contato direto há mais de dez anos, desde que nos formamos. É quase sempre assim, cada um vai seguir a sua vida, e o cotidiano se interpõe entre grandes amizades, mas ainda assim, senti a sua perda como se ainda estivéssemos bem próximas, quase pude adivinhar a expressão de dor que devia estar em sua face agora.
Já minha outra amiga da faculdade, está cheia de alegrias, teve seu segundo bebê, aparentemente de um casamento feliz. É um lindo menino. Um tão esperado homem na sua família. Ela foi coroada com o Lótus.
Uma prima minha, assombrada pelo título de “titia”, encontrou alguém especial, vai se casar, finalmente depois de tanta procura e tanta espera. O candidato parece ser mesmo pessoa certa. Estão apaixonados! Os dois estão nas nuvens! Fiquei preocupada. Fiquei feliz. Confusa ainda mais uma vez nesse mesmo dia.
Nesse vácuo do cupido também está uma querida tia, pretende se enlaçar finalmente, depois de ter saído de um longo e desastroso casamento. Agora, me disse que vai formalizar o novo relacionamento que a está fazendo sorrir e ficar como adolescente novamente.
Minha mais recente amiga, que conheci ao trabalhar com seu marido, está indo embora para sua terra, separada, me contou pelo MSN. Separou-se, depois de dois anos de um relacionamento conflituoso por causa da religião, de novo isso falou mais alto entre a humanidade. Ele judeu, ela cristã; e mais uma vez a religião conseguiu separar pessoas. Então agora ela não volta mais de sua distante terra natal, para nosso convívio que estava tão doce.
Dia estranho. Híbrido. Cheio de sentimentos que não consegui administrar ou classificar.
Enquanto isso, à tarde, eu repousava os olhos no horizonte, e pude contemplar um lindo colibri azul-esverdeado. Pareceu-me bem feliz, voando em volta da minha mangueira florida. Fiquei nostálgica, e um pouco preocupada de que ele virasse comida de um dos meus bichanos, enquanto voava inocente e alheio ao perigo, beijando as flores e cantarolando seu assovio agudo característico. Bastava um bote e num só pulo do gatuno, a avezinha iria fazer companhia ao marido da minha amiga, e descobriria o que tem do outro lado da porta sombria chamada morte. Mas não era ainda seu dia. Hoje não foi o último dia do colibri feliz. Ainda não. Cada um tem sua hora, cada tem no seu dia de dizer: - Adeus!
Assim, continuei o dia e deixei que o dia continuasse, sem saber o que sentir nesse dia tão mesclado de emoções, pois esse dia foi definitivamente: Um dia Híbrido!


© Por Lilly Araújo - Direitos Autorais Reservados.


Publicado na CBJE- RJ


quarta-feira, 20 de julho de 2011

A maldição da mancha

















A maldição da mancha

Papai era corretor de imóveis desde que se entendia por gente. Isso era já coisa de família, o pai dele era, e o avô também. Mas papai não me obrigaria a seguir carreira não, ele era bem flexível, e disse que eu é que deveria escolher o meu futuro. Mas se eu quisesse seguir os seus passos já era meio caminho andado, porque eu vivia enfiado na agência, e muitas vezes o vi em prática fechando contratos mirabolantes. Ele era mesmo muito bom negociante.
Eu me lembro bem de uma das vezes em que papai fechou uma venda grande, a comissão foi tão gorda, que papai não economizou. Comprou para mamãe uma máquina de lavar de última geração, um micro-ondas novo, e é claro, chegou com flores em casa e levou-a para um jantar a dois. Chegaram tão tarde que eu nem vi. Mas no outro dia, ela estava com um sorriso incontido no rosto e um anel cujo brilho prendeu a minha atenção, e não só a minha, mas a do meu gatinho também, que ficava correndo atrás do feixe de luz produzido pela jóia. Mas, o melhor mesmo foi quando notei que no meio da sala estava um pacote enorme embrulhado para presente, e um bilhete com meu nome nele. Fiquei semanas vendo estrelas. Já nem comia mais direito. Finalmente eu ia poder treinar para as disputas de fim de semana com meus amigos, pois tinha ganhado o tão sonhado vídeogame.
E como papai era um homem muito justo e moderado, imaginem só a surpresa que eu e minha mãe tivemos, quando um funcionário uniformizado tocou a nossa campainha em plena manhã de sábado perguntando pelo Sr. Gumercindo, meu pai. Atrás dele estava um Camaro igualzinho ao do Transformers. Amarelo com faixas esportivas pretas. Era realmente o Camaro Bumblebee! Na minha imaginação de criança, fiquei pensado em qual hora ele se transformaria em robô e falaria com a gente. O que é claro, nunca aconteceu.
– Papai, corre aqui em baixo. Tá acontecendo algo muito estranho!
– Deve ser a minha encomenda. Tô descendo já.
Minha mãe ficou em silêncio. Aturdida. Apenas esperando por uma explicação lógica para tudo aquilo, se é que teria alguma. (...)

E tudo se apascentou em nossos corações surpresos depois de uma semana. Como ele nunca havia feito nenhuma extravagância na vida que não fosse em prol dos outros, nada mais justo que agora ele realizasse o seu próprio sonho, por mais destoante com seu perfil que tivesse sido. Eu e mamãe acabamos adorando a idéia de desfilar por aí dentro de um carro meio super-herói. E nem preciso dizer o quanto o papai tinha zelo por aquele carro para vocês, não é? Limpava. Encerava. Lustrava. Revisava entusiasmadamente o bichinho amarelo. E se pensávamos que era empolgação de início, nos enganamos redondamente. Piorou muito. Com o tempo eu mal podia encostar-me à lataria, do agora intruso, sem o papai ralhar comigo.
Até que um dia o pior aconteceu!
Apareceu uma mancha amarela bem no meio da faixa preta daquele carro idiota. E papai foi à loucura. (loucura mesmo, vocês breve vão entender o que digo!)
De início ele pensou que fosse um descascado mostrando então a tinta amarela por baixo da bela faixa, mas não era. Era simplesmente uma mancha misteriosa. Nenhum dos profissionais conseguia explicar a origem daquela tragédia para papai.
Ele começou a ter um comportamento irritadiço a cada vez que abria o portão da garagem e lá estava a maldita mancha olhando para ele, debochando de sua impotência de se livrar dela. E parecia mesmo que ela se alimentava de sua tristeza, porque crescia sorrateiramente pelo capô, causando-lhe ainda mais dor.
 E assim, eu vi meu pai se transformar aos poucos numa pessoa totalmente diferente. Ele passou a ficar obcecado por manchas. Certa vez jogou a TV lá fora no quintal e dizia que a mancha agora estava querendo tomar também a sua casa, só porque eu tinha, sem querer, espirrado um jato de mostarda na tela da pobre coitada.
E como a mancha não parava de crescer, tudo foi piorando na vida de papai. Até que por fim, ele terminou despedido por se recusar a atender um cliente “graúdo”, só porque o sujeito estava com a gola da camisa toda manchada. Chegou até a agredir verbalmente o desavisado, que não entendeu patacas. Ainda bem que sendo muito querido por todos ao seu redor, o seu chefe nem lhe deu uma “justa causa”, e ele acabou recebendo ainda uma boa bolada.
Mas o pior mesmo foi quando ele ficou três dias inteiros trancado dentro do seu quarto, com um monte de frascos de tira-manchas na mão esfregando por todo lado.
Não teve outro jeito. Mamãe chamou os médicos e papai foi encaminhado a uma clínica psiquiátrica. Foi um golpe!
Mas lá papai foi muito bem tratado. Recebia nossas visitas com um sorriso que eu já estava até me esquecendo de como era. E começou a descobrir dons que nem sabia que possuía, como por exemplo, o de pintar maravilhosos quadros. Por fim eu achava que papai estava bem melhor que antes. Quando só vivia do trabalho para casa e vice-versa. E nunca reclamava de nada, mas eu percebia que os seus olhos não eram felizes.
 O médico até explicou que papai sofreu um ataque porque reprimia desde muito cedo suas emoções. O vovô, não era como ele, tão calmo e generoso, sem querer ou não, havia submetido o pobre filho a muita pressão. (...)

Então, tudo estava indo muito bem. Papai já estava quase por receber alta. Ele já havia até se decidido dedicar-se à nova profissão de pintor de quadros. Mas, uma funcionária nova cometeu um erro fatal. Entregou gentilmente o uniforme limpo de papai sem saber do seu mal, pois quando ele desdobrou o avental:
Lá estava ela. Enorme! Zombando-lhe, com um riso sarcástico de vitória. Aquela maldita mancha amarela.


© Por Lilly Araújo-17/05/2011 - Direitos Autorais Reservados.



















Pubicado na CBJE -RJ

sábado, 9 de julho de 2011

Um Lugar De Meus Sonhos


Um Lugar De Meus Sonhos

Acordei muito gripada. Resolvi nem sair de casa hoje, porque nesse estado seria muito difícil enfrentar um ônibus lotado, e poderia acabar disseminando esse vírus que me pegou de jeito. E ir de carro com a gasolina a 3 reais e 15 centavos? Nem pensar!
Fiquei em casa mesmo refletindo...
Eu sou brasileira e pago os meus impostos, até os que desconheço eu vou pagando, e pagando. Mas quando entro no hospital público é sempre a mesma história: “O médico de plantão ainda não chegou e já tem 30 pessoas na sua frente!”. O jeito é esperar, ou me automedicar, ou pagar mais uma vez por um médico particular.
E o Brasil está crescendo em ritmo assustador. Talvez seja até por isso que os impostos não baixam, porque senão o povo consome muito e desregula a economia. Esse papo econômico que eu nunca entendo direito. Porque a escola fez questão de nos treinar para outras coisas, que não, entender as peripécias econômicas, malandragens políticas e de nossos direitos civis, nada garantidos pela maioria dos candidatos que elegemos “democraticamente”.
 Então eu me dou ao luxo forçado de ficar em casa e observar de fora, como um mero expectador, o pulsar frenético da cidade grande. De dentro do meu apartamento estou a salvo! Pelo menos por um dia.
Aqui da minha janela eu vejo as fumaças saindo dos escapamentos dos milhares de carros engarrafados no trânsito febril, e brinco de imaginar bichinhos e objetos se formando nelas, assim como fazia com as nuvens quando era criança. Percebo quando um motorista a beira de em surto psicótico coloca o corpo do lado de fora de seu carro e gesticula enraivecidamente contra um outro, que acabou de lhe dar uma fechada para conseguir uma ultrapassagem forçada. A altura em que estou e meu vidro da janela fechado me poupam de ouvir as suas verbalizações, que com certeza não foram nada gentis. Eu apenas sorrio, e penso que loucura!
Volto ao meu chá de gengibre com gotas de limão que está quentinho e me enfio debaixo do edredom aconchegante, e vou me lembrar de quantas vezes eu pude ficar com janelas abertas e mesmo assim conseguir respirar, isso era quando estava na fazenda de meus avós, e os únicos sons que me acordavam era de grilos, pássaros, cigarras e outro bichos felizes a viver a vida como eu gostaria.
Num dado momento de minhas conjecturas eu me compadeço de você, que provavelmente não acordou gripado hoje, e teve que sair de casa para a lida, ao certo enfrentou um ônibus abarrotado de trabalhadores, ou se sentiu assaltado na bomba de combustível, e encarou o trânsito mais uma vez engarrafado, e ainda filas de bancos sem fim. Você que engoliu muita fumaça preta, muito “sapos” do chefe estressado, que saiu para o almoço e voltou atrasado, ou você que nem teve tempo de almoçar. Eu me compadeço de você, que infelizmente retornou desamparado e desesperançado, sem o atendimento do hospital mal equipado, e pensou: “Para onde é que foi o dinheiro dos impostos que eu pago?”- Como eu também pensei.
E pelo cansaço e medicação eu adormeço, e sonho com uma cidade bem projetada, onde os políticos amam o povo que os elegeu e os paga tão bem, e assim retribuem com saúde e educação pública exemplar. Um lugar onde a poluição foi erradicada por pesquisas patrocinadas pelo governo, e descobertas por esses maravilhosos cientistas que nós temos hoje em nosso país. Na cidade grande dos meus sonhos, cada um respeita o seu próximo e por isso não há injustiça e má distribuição de renda, e todos podem respirar aliviados. Até as árvores são mais saudáveis e têm líquens em seus troncos, porque o ar está limpo. E os seus galhos acolhem ninhos de passarinhos cantantes...
Então eu acordo com o estrondo uma batida violenta nas ruas lá em baixo. E percebo que eu e você ainda vivemos nesta mesma cidade. E só nos resta tentar nunca perder as esperanças de morar um dia em um lugar de meus sonhos.

© Por Lilly Araújo-20/04/2011- Direitos Autorais Reservados.



Publicado na CBJE